domingo, 7 de março de 2010

Carta em prol da cachaça

Caro(a) representante da Dorana Forte Real Formaturas,

Sou recém-formado da Poli USP e aderi na primeira oportunidade às festividades da minha turma, as quais estão sendo organizadas pela vossa empresa. Estou bastante animado para as solenidades em especial para o baile de gala que ocorrerá no dia 27 deste mês, contudo uma regra estabelecida para o referido evento me deixou um tanto insatisfeito.

Recebi o informativo com os detalhes da festa através do qual descobri que a rolha é livre, o que significa que os convidados podem levar suas próprias bebidas à festa, mas apenas algumas bebidas específicas: "Whisky, Licor (AMARULA), Vodka, Vinho, Champagne e Energético"; enquanto outras são explicitamente citadas como proibidas na festa: "Tequila, Aguardente, Martini e outras bebidas".

Minha insatisfação, e intuito desta carta, diz respeito a uma dessas bebidas que nem será servida no evento e nem permitida sua entrada por meio dos convidados, pelo que entendi. A palavra utilizada foi aguardente, que é um termo genérico que designa a maioria das bebidas destiladas com alto teor alcoólico, incluindo a vodca, a tequila, a cachaça entre outras[1]. Portanto designa tanto bebidas permitidas como vodca como proibidas como tequila. Não obstante, para evitar essa contradição, interpretarei o termo usado "aguardente" como aguardente de cana.

Tenho a intenção de levar ao baile, como referência à minha terra natal e para apreciação de alguns amigos que estarão presentes, uma cachaça artesanal paraibana que tem recebido posições de destaque nos rankings especializados mais recentes[4], [5]. Me vi impedido de concretizar essa intenção devido à imposição da supracitada regra restritiva.

Ao questionar sobre esse ponto à representação da comissão de formatura, a que tenho acesso mais imediato, fui informado que a justificativa era a mesma da restrição de traje dos convidados (smoking para os formandos e padrinhos, social completo para os demais convidados e vestido social para as meninas), ou seja, pela vossa concepção, o uísque (mesmo se for um Whisky Chanceler), a vodca (mesmo se for uma Natasha), o vinho (mesmo se for um Sangue de Boi) são bebidas superiores, de um gosto mais fino, do que a cachaça brasileira (mesmo se for uma Anísio Santiago[9]).

Não sei se essa regra se aplica a outras formaturas organizadas pela sua empresa, mas estive em uma delas em fevereiro deste ano, levei minha cachaça e entrei com ela sem problema algum. E sei que havia algum controle na entrada posto que foi pedido para que um colega que estava entrando na festa junto comigo com um uísque retirasse a bebida de dentro da caixa e levasse apenas a garrafa. Particularmente, acredito que seja muito difícil ou caro efetivar essa regra, manter controle das bebidas que estão entrando no evento, já que bastaria verter o líquido desejado na garrafa apropriada e estar-se-ia oficialmente carregando um uísque ou champanhe.

Dito isto, acredito que no final, a regra existe apenas para manifestar uma opinião, um juízo de valor sobre as bebidas. Minha crítica central não é pelo fato da forma como está expressa a regra não representar corretamente a intenção, como ilustrei dando exemplos de bebidas permitidas de notável baixa qualidade; tampouco quero questionar a capacidade de pôr em prática a regra. Esses dois problemas existem mas são toleráveis, são compreensíveis.

Quero apenas ajudá-los a romper o preconceito declarado na regra referida e a enxergar o real valor que a cachaça brasileira tem aqui e mais ainda lá fora, no exterior. A conceituação da bebida destilada brasileira mudou drasticamente principalmente na última década, deixando de ser associada a um baixo nível social, irresponsabilidade e alcoolismo e passando a se associar a emprego, inovação, e melhoria da qualidade de vida[3].

Cachaça é a denominação típica e exclusiva da Aguardente de Cana produzida no Brasil[8], assim como a tequila é mexicana, o saquê é japonês, o champanhe é francês, e assim por diante. Valorizar a cachaça é valorizar nossa cultura, nossa terra[1], o que muitas vezes os estrangeiros sabem fazer melhor que nós mesmos, e só quando percebemos o quanto americanos, europeus e asiáticos apreciam algum de nossos produtos que começamos a também querer valorizá-lo.

Pois bem, esse tempo já chegou. Fiz um apanhado de notícias e matérias publicadas para que não seja preciso que acreditem nas minhas palavras. A aguardente de cana já é consumida em mais de sessenta países, entre eles, alguns que têm sua população como sendo as mais sofisticadas e ricas do mundo[3]. "O nome cachaça hoje é um toque de requinte. Cachaça hoje é uma coisa muito nobre, muito chique, muito elegante de beber", afirma César Rosa, presidente do Instituto Brasileiro da Cachaça[6]. Em Manhattan, é comum encontrar nas mesas de executivos em ascensão drinques à base de cachaça, como a imbatível caipirinha. Aliás, a mistura brasileira de cachaça, açúcar e limão já é um dos dez coquetéis mais famosos do mundo e está na lista da revista inglesa Drinks International, bíblia dos produtores de bebidas.[...] No evento Brasil 40º, que encheu a loja de departamentos Selfridges & Co., em Londres, de produtos brasileiros, novo êxito: a cachaça roubou a cena e conquistou os ingleses. E na festa promovida por brasileiros em Cannes, na segunda-feira, 17, mais de 200 garrafas da bebida foram consumidas.[2]. A cachaça é o destilado do Brasil e uma das bebidas mais nobres do mundo. Ela é complexa, forte, e cheia de nuances e só recentemente começou a ser apreciada com o respeito que merece[4].

A ascensão da cachaça se assemelha em alguns aspectos com a das sandálias Havaianas. Passou de um artigo de consumo das massas, para uma marca mundial de luxo[7]. Só não compreendo por que então as tais sandálias serão distribuídas aos formandos na festa, como mais um toque de requinte do evento, enquanto a cachaça fica do lado de fora, injustamente excluída.

Por esses argumentos, peço não simplesmente uma autorização exclusiva para mim, mas a alteração da regra da rolha livre para incluir a cachaça (com esse nome) no rol das bebidas permitidas e exclusão do termo "aguardente" das não permitidas.

Agradeço antecipadamente pela atenção a esta questão e aguardo resposta.

São Paulo, 06 de março de 2010

Tácio Filipe Vasconcelos de Medeiros

recém-formado - Poli USP - Dez/2009

Fontes de referência:

[1] Revista Globo Rural Edição 211 - Mai/03 - Marvada chique
http://revistagloborural.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,533013-1641-1,00.html

[2] Globo.com - Mai/04 - Cachaça brasileira conquista cada vez mais fãs em todo o mundo
http://www.feiradacachaca.com.br/atendimento/reportagens/cacha%E7anomundo/Cacha%E7a%20brasileira%20conquista%20cada%20vez%20mais%20f%E3s%20em%20todo%20o%20mundo.htm

[3] Considerações estratégicas sobre a Indústria da cachaça
http://www.simpep.feb.unesp.br/anais/anais_11/copiar.php?arquivo=620-souza_maf_Considera%E7%F5es%20estrat%E9gicas%20sobre%20a%20Ind%FAstria%20da%20cacha%E7a.pdf

[4] Revista Playboy Ago/09 - Ranking Playboy da Cachaça 2009
http://www.mauriciomaia.com/pdf/Ranking%20Playboy%20-%20Agosto%202009.pdf

[5] Revista Veja Fev/10 - Cachaça para Degustar
http://www.ocachacier.com/pdf/Veja_17_Fev_2010.pdf

[6] Web Luxo - Fev/08 - Cachaça vira produto de "luxo" e ganha mercado no exterior
http://www.webluxo.com.br/menu/comer/cachaca_chique_exterior.htm

[7] Revista PIB - Dez/09 - O Missionário da Caipirinha
http://www.revistapib.com.br/noticias_visualizar.php?id=400

[8] REGULAMENTO TÉCNICO PARA FIXAÇÃO DOS PADRÕES DE IDENTIDADE E
QUALIDADE PARA AGUARDENTE DE CANA E PARA CACHAÇA
http://extranet.agricultura.gov.br/sislegis-consulta/servlet/VisualizarAnexo?id=14175

[9] Jornal da Tarde - Jul/03 - A cachaça que vale mais que dinheiro
http://www.feiradacachaca.com.br/atendimento/maisquedinheiro.htm